Nós, participantes do II Encontro Sul-americano das Culturas
Populares, que representamos as delegações da Argentina, Bolívia, Brasil,
Equador, Paraguai, Venezuela, com a presença de Cuba como convidada,
chamamos a atenção de nossos governos para que reconheçam o
extraordinário valor deste Encontro, que aceitem e incorporem as
afirmações e as propostas dos mestres e mestras das culturas populares, que
são a alma, o passado, o presente e o futuro de nossa América.
A presente reunião se conecta também com os alinhamentos da
Convenção sobe a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões
Culturais da Unesco (outubro de 2005), que vem, justamente, enfatizar a
defesa, a valorização e a promoção das culturas tradicionais e o respeito à
diferença dos povos de todo o mundo.
Este momento tem um grande valor histórico também porque, em
uma quarta semana de novembro (precisamente de 25 a 27 de novembro de
1970), há 40 anos, foi realizada em Caracas a primeira Reunião
Interamericana de Especialistas em Etnomusicologia e Folclore, da qual
resultou a Carta do Folclore Americano.
Naquela época e naquele contexto social, cultura e político, a Carta
concretizou a aspiração de uma geração de pesquisadores e representantes
de órgãos estatais e internacionais de todo o continente para que as culturas
tradicionais da América Latina fossem protegidas, difundidas e
promovidas.
Ao contrário de como se propôs daquela primeira vez, na qual os
mestres e artistas populares, os povos originários e as comunidades de afroamericanas
não estavam presentes, esta carta é escrita com a participação
deles e em um novo momento histórico da América Latina, no qual muitos
países atualizaram suas constituições, elaboraram políticas, programas e
legislações para incorporar as demandas populares e o reconhecimento de
toda sua diversidade cultural, de modo a promover a inclusão social. E,
ainda mais, em um momento em que os mestres das culturas populares têm
a palavra e são protagonistas de suas conquistas e demandas, que este
documento desperte a consciência dos governos sul-americanos para se
identificarem com estes sentimentos e se comprometerem integralmente em
implementar as propostas de políticas públicas que os mestres e artistas
populares, povos originários e comunidades afro-americanas assinalaram
neste documento.
A partir do II Encontro Sul-americano das Culturas Populares, os
mestres e as mestras, os grupos e redes da cultura popular, artesãs e
artesãos, pesquisadores e representantes dos Estados, de cada país aqui
representado, expressamos a necessidade de destacar o que foi
invisibilizado e silenciado ao longo do tempo, de obter mais respeito, de
garantir a cultura como um direito humano fundamental. Além disso,
esperamos que naquelas regiões da América em que, infelizmente, ainda se
sofre com a falta de recursos, a discriminação e a ausência de mecanismos
adequados de registro e proteção, se superem tais condições.
Consideramos que a cultura produz vínculos sociais duráveis e que,
para fazer uma verdadeira revolução com cidadania, temos que começar
pela cultura, na medida em que um povo que não se envolve no processo de
construção de sua cultura não tem sentido de pertencimento.
Não podemos deixar morrerem as culturas populares, nem deixar que
os produtos da indústria cultural transnacional, sem raízes em nossos
povos, tenham mais importância e opaquem a nossa.
O mundo tem que se abrir. É necessário criar um ambiente de
confiança no qual todos se sintam livres para expressarem suas artes e
saberes. Hoje em dia desejamos ter mais espaços onde possamos expressar
nossos sentimentos. Existem aqueles que podem e os que não podem.
Precisamos deixar aflorar o sentimento reprimido para que nos seja
permitido crescer, como a germinação de uma planta, como a seiva que
alimenta sua vida.
Para transformar a realidade vivida atualmente pelos mestres e
artistas populares, reconhecemos a importância de promover a integração,
não apenas regional, mas também entre os povos e os mestres e artistas
populares. Precisamos eliminar simbolicamente as fronteiras que são
criadas pelos homens, para promover Integração com Diversidade.
Neste sentido, os grupos, redes, mestres populares e representantes
dos Estados, aqui reunidos, afirmam que o sonho da integração está
deixando de ser uma utopia e se convertendo em uma realidade. Estamos
construindo uma ética popular dos nossos povos sul-americanos.
A integração nos faz irmãos, enriquece saberes e sabores e se
cristaliza nos âmbitos culturais, sociais e políticos.
Acreditamos que a cultura pode se tornar um veículo de coesão, que
nos mantém unidos como família e nos serve como alimento espiritual. A
promoção de encontros ajuda a garantir nosso direito de conhecer uma
parte de nós mesmos que não conhecemos. Nestes encontros, a cultura e
todo o universo cultural se abraçam. Esta fusão cultural nos enriquece e nos
alimenta, como uma vitamina para a alma.
Ao mesmo tempo, queremos garantir a integração com diversidade.
As diferenças ou variações das manifestações culturais não implicam na
desqualificação de algumas delas, mas sim, expressam o interesse em
proteger as raízes de cada uma.
Além da integração, afirmamos que é essencial a atuação do Estado
para promover e dar base para multiplicar a sabedoria popular dos mestres,
sem ter a participação em organizações políticas como condição.
Valorizamos um governo popular que aponte para a inclusão social,
a proteção das culturas populares e que apóie as pessoas que estão
trabalhando diretamente com a cultura popular.
Por isso, acreditamos que é necessário romper com o paradigma do
apoio único às Belas Artes.
E, mais que tudo, que a voz e a decisão sejam, a partir de agora e
para sempre, dos mestres e artistas populares. Nesse sentido, precisamos
defender a autenticidade e a autonomia das culturas populares, com um
despertar para o coletivo.
Precisamos promover e preservar as culturas populares, reunindo e
deixando fluírem novas criações. Para isso, deve haver em todos os países
um casamento entre a cultura e a educação, valorizando os mestres como
docentes nas escolas e universidades e ensinando professores a dançarem,
tocarem e brincarem, por exemplo. Devemos unir cultura e educação se
queremos a continuidade das culturas populares, ensinar as crianças e os
jovens para que se perpetue o saber e a cultura do que nos é próprio. Se a
educação é um direito de todos, devemos criar as condições para que a
cultura também possa ser.
É importante promover o conhecimento mútuo das expressões das
culturas populares, por meio de um mapeamento regional. Paralelamente,
propomos a elaboração de uma política de gestão de riscos das expressões
das culturas tradicionais e, a partir disso, criar um fundo latino-americano
para proteção e promoção de nossas culturas.
O registro e a difusão de tudo o que fazemos são também formas de
resistência.
Para contribuir com a preservação e a dignidade deve ser criada,
dentre outras coisas, uma pensão digna aos mestres, que fazem a beleza de
seu país com tanto trabalho e amor.
Devem ser criados centros de formação permanente sobre as culturas
populares, para que os mestres e artistas possam circular entre os países na
qualidade de mestres, promovendo a interculturalidade.
Requere-se proteger o patrimônio lingüístico sul-americano,
fomentando seu reconhecimento como línguas oficiais e promovendo sua
aprendizagem e seu uso.
Devemos ter consciência de que as culturas populares não são
predadoras do meio ambiente. Ao contrário, nas comunidades em que as
tradições estão vivas, o meio ambiente e a biodiversidade estão
preservados. E, além disso, os produtos industrializados descartados são
transformados para gerar beleza, desfrute e desenvolvimento humano.
Com estes processos, podemos construir nossa obra e nossos sonhos.
Podemos compartilhar e multiplicar nosso amor, paz e liberdade. Assim,
vamos chegando ao contexto necessário para ter apoio com humildade,
união e diálogo.
É devido à possibilidade de criar um lugar onde toda a juventude sulamericana
tenha vontade de aprender as tradições, que vale a pena estarmos
aqui e fazer todo este esforço. Assim, saberemos que vale a pena estar aqui
e fazer todo este esforço. Assim, teremos a possibilidade de que os jovens
resgatem os frutos velhos, semeando novas sementes para o futuro.
Cultura popular é reinventar o mundo. É fundir o ouro, o cobre, o
chumbo, a prata, é construir os instrumentos, é curtir o couro; é moldar o
barro, polir a pedra, tingir a areia, converter penas em coroas verdadeiras,
talhar a madeira, tecer as fibras das árvores e, com elas, tecer a fibra da
humanidade nova. E cantem livres aos ventos que os levem a uma roda de
dança que cultive nossos povos, nutrindo assim a nossa espiritualidade
Nós, mestres, mestras, artistas, pesquisadores das culturas populares,
povos originários, comunidades afro-americanas e representantes da
sociedade civil e dos Estados, subscrevemos:
Caracas, 28 de Novembro de 2008
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